Saindo da escola vi aquele prédio antigo, imponente e cor de creme compondo o centro de uma praça com um chafariz. Nele estava escrito: Biblioteca Municipal. Resolvi entrar e ao fazê-lo dei de cara com a sessão de literatura infanto-juvenil. Fiquei maravilhada. Era uma sala inteira só de livros para crianças. Depois de muito olhar, me apaixonei por um: Uma casa na Campina! Era de uma tal de Laura Ingalls Wilder. Mais tarde vim a saber que era uma coleção. E mais tarde ainda soube que era um clássico da literatura americana e até série televisiva tinha virado. No livro, Laura tinha uma família e eles estavam todos juntos gozando as alegrias do verão e se aquecendo juntos no duro frio americano. A vida era difícil, os invernos rigorosos, mas eles estavam juntos costurando as suas roupas, aquecendo a cama fria com ferros quentes e construindo as suas próprias casas. Eu não achava a minha vida difícil assim. A única coisa é que só via meu pai à noite e minha mãe nos finais de semana. Fui até a recepção saber como poderia me associar. Descobri que precisava do RG de um adulto. Minha casa estava há uns 20 minutos de caminhada dali e, se fosse até lá, não poderia voltar naquele dia. Estaria já escuro. Não dava. E eu precisava. Eu não poderia sair dali sem o livro. Eu tinha 9 anos, mas já vivia há dois longos anos longe da minha mãe. Morava com meu pai e a mulher dele. Essa situação faz uma criança amadurecer mais cedo, penso. Eu decidi que iria conseguir um RG então. Saí da biblioteca e fui até a parada de ônibus que tinha na praça. Abordei uma senhora que ali estava e expliquei a minha situação. Não precisou muito para que ela me desse o seu RG. Ah, a inocência daquela senhora, a minha e a dos anos 80 me comovem. Eu gostaria de ter sido também aquela senhora e ter dado meu RG à uma menina de 9 anos. Voltei à biblioteca, me associei e levei o livro pra casa. Foi o início de uma longa história de amor com aquele prédio, aqueles livros e comigo mesma. Laura virou minha velha conhecida. Lembrei dessa história num dia que estava com a cabeça nas nuvens. Estava tomando banho e já tinha dado comida requentada pro meu filho e pro meu marido. O pai havia ficado com o filho durante a manhã pra eu trabalhar num curso de storia dell’arte. Não trabalhei, ainda que tenha reencontrado um livro ótimo pra adicionar à bibliografia do curso. Fiquei somente mexendo nos meus livros e no passado. Queria poder passar o dia de pijamas com as mãos cheias de pó. Muita coisa deve ser escrita e gestada nesse estado de descompromisso. Talvez por isso existam mais livros escritos por homens. Não dá pra requentar comida todos os dias. Não tenho mais 9 anos. Tenho 40. Minha mãe segue ausente. Como se eu fosse órfã de mãe em vida. Lembrei dela, de como ela era boa em discursar, em conversar. Na prática ela fazia tudo ao contrário, mas ainda assim eu gostava daqueles momentos de conexão, em que ela parecia entender tudo. Eu gostava também do cheiro da pele e das coisas dela, da sua loucura e contradições. Ela então me elogiava, ressaltava o quanto me achava inteligente e lúcida, mesmo pequena. Essa mulher não existe mais. Nunca mais a encontrei depois que tive meu filho. Sinto saudades dela. Choro. Ainda bem que estou no banho. Tenho que correr senão vou chegar atrasada pra dar aula. Queria só por hoje um teto todo meu, para parafrasear a Virginia Woolf.
sexta-feira, 24 de novembro de 2017
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